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Situações de crianças se divertindo com muito pouco e construindo mundos atravessados por valores importantes que elas mesmas conceberam a partir dos sonhos, que sonham dormindo, ou que sonham quando estão acordadas. É preciso ter abertura para isso. Tenho tido a oportunidade de ver as crianças sendo capazes de sonhar com tanta coisa, que custa pensar que nossos sonhos estejam se tornado tão supérfluos para nós. Por que deixamos de lado essa vantagem que temos, de sonhar?

Penso que muitas vezes as questões práticas nos prendem demais e que apesar de serem fundamentais – como as necessidades básicas de todos nós – a liberdade para sonhar está ligada a algo muito genuíno, muito nosso, que é anterior a qualquer uma dessas condições que podem nos limitar quando paramos para pensar no tema “liberdade para sonhar”. Sabemos que o contato com a natureza já foi outro, que o tempo para sonharmos era outro, enfim, que a nossa experiência era diferente do que é hoje. Mas precisamos nos perguntar mais sobre os sonhos das crianças.

“Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades.” (Krenak 2019: 25)

Deve ser por isso que buscando inspiração me recordei de um momento em 2019 e que fiz questão de registrar em meu caderno com cuidado, como um voto de fé nos sonhos das crianças:

“Um aluno do 1º ano sempre que pode conversa comigo depois da aula. Ele é o menorzinho da turma e parece muito frágil, no entanto, é com certeza o mais determinado. É daquelas pessoas que a gente vê que nasceram presentes na vida, sabe?

Hoje ele veio de novo no fim da aula enquanto eu arrumava as minhas coisas e perguntou:

– Professora, sabe o que eu vou ser quando crescer?

Parei o que estava fazendo e percebi que tinha esquecido que é normal fazer isso quando se é criança (ainda mais porque ele não disse “quero ser”, “gostaria de ser” e sim “vou ser”). Espantada perguntei:

– Nossa, mas você já sabe o que quer ser?

– Claro que sei! Eu vou ser engenheiro!

– E que tipo de engenheiro você vai ser?

– Daquele que constrói máquinas. Desde muito pequeno eu desenho os projetos e um dia vou construir as máquinas.

– Me conta sobre elas?

– Sim! A que eu mais gosto, a … funciona como teletransportadora.

(retirei aqui o nome da máquina porque acredito mesmo que ela possa vir a existir)

– Que interessante… E faz voltar para trás e para a frente?

– Sim! Tchau professora…

Já distante de mim parou e gritou:

– Não esquece, tá bom? Eu vou ser engenheiro!

Não esqueço. Minha esperança está em você. Espero que se não der para voltar e reparar nossos erros, a sua máquina faça a gente ter um futuro.

Ps: Por favor, voltar pra me pegar para eu ver!”

Vejam. Esse texto não foi escrito só por mim, sozinho – como todos os textos que já foram escritos nunca o são. Ele foi escrito principalmente pelo meu aluno. Pelo seu sonho de ser engenheiro de máquinas como a “teletransportadora” de que me falou aquele dia. O texto que escrevi em 2019, então, é resultado de uma conversa, com uma criança que tem um sonho legítimo e que felizmente decidiu compartilhá-lo comigo. Me senti mais sortuda depois daquele dia.

E agora escrevendo este texto, me deparei com algo para o qual ainda não havia dado muita atenção. Quantas das histórias dos livros infantis são escritas a partir daquilo que os adultos experienciam com as crianças, aquilo que elas lhes contam? Pais e mães têm sido autores de diversas dessas histórias, porque têm a oportunidade de ter as referências necessárias para escrevê-las bem de perto?

Sabemos que as crianças, ao descobrirem o mundo, criam narrativas para ele, de acordo com as peças que juntam sobre o que veem, o que ouvem, o que sentem. É por isso também que quando pensamos em sonhos, devemos pensar nas referências e no papel fundamental que elas desempenham em nossas vidas. E de quais referências estou falando? De basicamente tudo o que permeia a nossa experiência. Também é preciso se esforçar para sonhar!

Nos últimos dias, em matéria de referência e de sonhos, o Brasil recebeu uma ótima notícia. O resultado de um sonho levado muito a sério e com uma alegria que arrebatou a todos que assistiram à skatista Rayssa Leal, na prova dos jogos Olímpicos Tokyo 2020, levar a medalha de prata na modalidade “skate”. A Rayssa, com apenas 13 anos, é também conhecida por “Fadinha” por causa de um vídeo que gravou em 2015, andando de skate fantasiada de fada – e essa imagem já diz tudo, não acham?

Nesse momento em que o país atravessa diariamente dolorosas notícias, com grande dificuldade para sonhar, a vitória da fadinha Rayssa, parece vinda dos contos de fadas, porém, longe disso, é uma história muito real de alguém que segue um sonho, ou melhor, que o persegue. E como é que se persegue um sonho?

Muitos dos comentários que li depois da vitória, entoam justamente essa parte: profissionalismo, destreza, todo o esforço e determinação que estão implicados na construção desse sonho, combinados com uma alegria especial, uma empatia pelos colegas e parceiros de jogo, uma história que não tem nada de romântica, de uma menina que, afinal, está se divertindo, fazendo o que ama, que é andar de skate.

E haveria tanta coisa que se pode retirar dessa “lição” que a Rayssa nos dá. Como por exemplo, o fato do skate sempre ter sido um esporte associado aos meninos, ou de como durante tanto tempo foi uma modalidade marginalizada pela sociedade. Quantos sonhos não são desfeitos em nome do género, ou da classe social?

Desejo mesmo que histórias como a da Rayssa continuem reverberando em nós. Como aquela que vivenciei com o meu aluno reverberou em mim, pois:

Como é contagiante ver uma criança com liberdade para sonhar!

Referências

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Rita Miranda
Mestre em Filosofia e Diretora de Teatro
olaooa.com.br/blog/

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